quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Passagem

Faça de mim a noticia não dita
toda palavra que seus lábios escondem atrás dos dentes brancos.
Me torne suas horas, seu tempo perdido
(trezentos anos, trezentos dias, trezentos berros a beira mar!)
e em cada dia que se for
irá também a imagem de meu corpo
um pedaço escorrendo pelos dedos amolecidos
pelo suor de suas costas

Então, quando não mais existir
nada que tenha cor
nada que tenha cheiro
Sequer um retrato amarelado de sangue
um sopro, uma voz
verá que o passado é um deserto sem fuga:
um beco umedecido
que nos recria novamente

sábado, 23 de janeiro de 2016

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Do chão tudo levanta
e cresce pelos rastros de terra
em movimento vertical
estirando cada fibra-raiz
e laços da carne
a sua incontornável espessura
(levantar-se são gotas de sangue
ou lágrimas que caem
dos olhos e das pernas)

O corpo, portanto, sai do chão
e por isso
não é possível negar
que temos os pés colados à terra.
O corpo não é uma máquina
O corpo não é um sonho
O corpo não dorme com outro corpo
por mais que a pele se dissolva
na quente escuridão do asfalto.

Porque tudo sai do chão
Porque tudo se ergue do frio sólido
como o úmido dos lábios
a voz gritada ao esquecimento
ou o tempo colocado em calendários
é que os nomes são desimportantes.
E já não te digo 70 vezes
quando acordo
ainda que pense as mesmas 70 vezes.

Aquilo que se ergue é incerto e passageiro
duplo
assim são as árvores, as ferramentas
o que se faz entre o branco
e o branco
e o branco
e o branco
que não sou eu, mas a casa
Quatro paredes que envolvem
com sua língua rosada
aquele que nela busca um nome, lar.

As unhas pintam e rasgam
as mãos a que pertencem
O tempo esconde com areia
o movimento oposto que reage
Levantar é uma dúvida
e o couro jamais sera couro
enquanto não levarem o boi.


sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Cesária Évora no meu caminho

Passa no mar
um barco singelo
de navegar tranquilo.
Atravessa o caminho cantando
uma melodia cheia de ladrilhos

Na rápida passagem de mar
ele se vai.
Como onda que nasce sozinha
como toque da viola.
Só fica sua imagem repetida no passado
a experiente voz de marinheiro
que cantava saudades a se sentir

É sal sobre a carne
o som que não se vai.
Meu coração fica a chorar
cheio de dor.

Aquele barco já se foi.
Foi encontrar seu amor
para depois desinventar.
Limpar em água
para pisar sobre a areia
o sorriso acrílico
que deixou no meu rosto.

sábado, 11 de julho de 2015

O pescador

Existe um mistério
imerso dentro desse corpo.
Algo espesso
maior que um peixe
maior que um galho
maior que o barro
fincado no fundo do rio

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Volume

Quero enxergar meu gesto
como uma velha ruiva
que exibe a lingua para o mundo
e grita
o escárnio de todos os dias
o absurdo das coisas
o sexo que some entre as pernas.
(Porque o sexo não passa
da irrelevância da carne
fragmento do corpo
uma gota da tinta não posta no quadro).

O movimento que vem
daquilo que não se vê
é o volume dos meus sonhos
a essência que se busca.
Mas pergunto
-e a pergunta consome-
há essência em todas as coisas?
O vaso, o carro, a janta
as manhãs de domingo
o choro do filho.
Há essencia em todas as coisas?

E assim me desespero
entre passos que tocam a terra
e um respirar sem data
para o fim.
Quero o tempo
que vem de dentro e tem fome
quero o tempo
que é do outro
quero o tempo
que já passou
sem que ao menos o tivesse visto.

Um punhado de sal jogado no mar
é a visão que procuro
pois no reflexo do rosto
vejo meu corpo imerso em oceano:
mas, não sou nem mar nem sal

sábado, 6 de junho de 2015

Aquilo que vi

"Cloud Earth Twist" - Bright Ugochukwu Eke

Vejo um sabor de medo
escorrendo do céu
gotas largas, primitivas
desconhecidas em seus absurdos,
são lanças
ataques violentos
contra a terra
a luz de cada grão
o sangue da areia
o fogo da caverna
a célula original.

Vejo o esquecimento
dos olhos
a cegueira
dos gestos
a transparência da pele
o fraco da pedra e dos ossos

Os passos sobre ovos
sendo passos de gigantes
Cada centímetro
cada lasca
cada sentido
Tudo é em vão
como um buraco que a terra come
um corpo que a chuva leva

Sou o que não vejo
E necessito enxergar
Se o esquecimento
me acaricia os cabelos