sexta-feira, 28 de junho de 2013

As paredes do quarto


As paredes frígidas
erguidas na febre dos duros tijolos
apertam-me a alma com sua voz lambida de cal
enquanto sustentam protuberantes vazios:
O branco dessas paredes, o mudo dessas paredes
o silêncio desse quarto
as quatro paredes brancas que engendram esse quarto

Já não há mais os antigos móveis
em pinho talhado nas lascas do formão
a cama coberta com lençol
as estantes e os livros esculturais
não há mais quadros
não há mais gritos
não há mais sonhos
não há mais quarto
nesse universo

(O branco abarcou tudo e abarcou também a mim
sumiu com as teias de aranha e as formigas
com a luz que batia na janela
com minhas capas de revista
meus enfeites de cabeceira.
Sumiu com o vento que vinha das estrelas
com minhas medalhas infantis.
Sumiu também com os sorrisos que guardava
com minhas roupas e cheiros.
Sumiu com meus amigos, sumiu com meus medos)

Fértil como a solidão interna dos ovos
esse quarto me mantêm preso
encarcerado em sua cópula clara
densa, inodora, luminosa
como um copo de magnésia

De que material
serão feitas as paredes desse quarto?
Serão da cegueira límpida das roupas hospitalares?
Do leite embebido na paciência dos loucos?
Será o branco desse quarto
um grito eterno no desvario do tempo?

domingo, 23 de junho de 2013

O lobisomem

"E eu parti travestido de Dor" - Décio Pignatari

Um cão corta a rua
enquanto uma faca risca o vento.
E o pelo negro de cão
é o mesmo pelo dos pássaros
que comem matéria morta
com os dentes afiados
e as garras agudas
entrando dentro da carne

O cão não é um pássaro
e não é um homem,
vive sozinho
com os olhos de asco
cheirando a carne fria
e as têmporas abertas
preenchendo-lhe com nada o instinto voraz

Não vive e não conhece as árvores
não sabe do sexo, nem do amor
só sabe do desejo de outro cão
da pele áspera de outro cão
que lhe mostra os dentes
vermelhos e secos
em sua fecundidade de sangue

(Esse cão flácido,
ululando bolhas de enxofre
negro como o ventre podre de qualquer pobre
amorfo na miséria de cães imundos
duro, intacto, como o desejo inalcançado
de tantos cães mortos)

Atravessa a noite cheia
e se traveste com patas de cal,
pelos de lascas de metal
esse homem nu que agora é cão.
E procura nos vivos
o cogumelo que coagula solitário,
tinto no mel que fervilha nas veias,
no gelo arcaico das artérias.

Este cão, este homem desumano:
mangue de cólera adormecida
febre das bestas dilaceradas na noite.
O outro que se encontra em mim
no universo de luar que desconheço