sexta-feira, 26 de julho de 2013

História da tristeza incompleta e do amor

1.
Uma gota não me escorre do rosto
como o leite fugido das coxas
ou a pedra seca, carente de cor
rolando do topo da montanha.
E meu maior desejo era chorar
feito uma criança faminta
que estica os braços gordos
a procura de um peito que a amamente.
Feito um homem que perde sua perna
feito um cão apunhalado, um cão esfaqueado
Feito um homem mascarado
que vê o amado pela janela
e não o tem entre os braços,
enlaçando-o em seu peito fervoroso
quente,
como deveriam ser as lágrimas

Hoje eu sou da maneira
que nunca devia ter sido
sou tudo porque sou incompleto
porque minha tristeza é um copo à espera de água.
Só tenho mãos porque os braços ainda me restam
só tenho olhos porque a esperança
(de lágrimas turvas fugindo a face)
ainda existe.
Meu sonho, minha imagem inalcançável
é essa esperança.

2.
Já não sei mais o que é costas
o que é seio e o que é lábio.
O que são as pegadas na areia
e as marcações feitas na folha do caderno.
Sou o amor e o amor me é
sou você porque minha alma já se desconhece
e não sabe quais os valores que a faziam alma
os sons que a faziam alma
a cobiça que a fazia carne

Sou o meu sexo e o seu sexo
o calor que te vaza da rosa
e me floresce no interior dos pulmões
sou a parte que lhe faltava
a cavidade tapada por seu bojo
Sou o sangue do seu sangue
o mar e as ondas feitas por seu sopro
a luz que fugiu das velas
as palavras proferidas na língua.
Sou o amor, a loucura e o desejo.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Encaminhamento de Ana

Estávamos conversando, esses dias, sobre a dependência da criação poética às experiências pessoais. Decidimos então fazer um desafio: Helena, mulher branca e feminista, teria que escrever um poema sobre a causa negra, e Ronaldo, homem negro e anti-racista, faria o mesmo, mas sobre a opressão por gênero. As trocas de experiência sobre as opressões que sofremos foram cruciais para que pudéssemos entender mais e apoiar às causas um do outro e vice-versa. Seguem abaixo os resultados deste desafio conjunto.


Carlos, é muito difícil narrar-lhe os fatos.
Não compreendes que o corpo é uma folha caindo de uma árvore?
Um pássaro extinto fugindo pela floresta?
Um feixe de luz derramado na ausência?

Deve-se então, Carlos, tratá-lo com liberdade
poupá-lo de seus cuidados malignos
de seu julgamento saudoso
da fria coberta que é seu pudor.
Carlos, o corpo que tenho não merece
os espelhos flácidos que são seus olhos.

Nosso corpo é a essência dos frutos
o início secular de tudo.
E é nosso como é de um homem seu órgão
e de um negro sua pele
(entenda também que a pele do negro
não merece qualquer desrespeito
que lhe esteja na mente, Carlos).
O corpo é a nossa alma e nosso sangue
nosso direito de posse e vontade.
O corpo, Carlos, o corpo.

Por assim ser faremos dele o que a vontade mandar.

Carlos, um ferreiro constrói sua espada
e domina seus movimentos,
as subidas verticais e quedas livres.
Nós faremos o mesmo:
o corpo será nossa espada reluzente
e o ventre nosso ataque e defesa.

O corpo, o meu corpo, o nosso corpo, Carlos
já não aceita mais as regras e valores violentos
que te pertencem,
os cintos de castidade que são suas palavras
o respeito unilateral proferido por seu suor.

Carlos, entenda como a última vez que te falo.
Não haverá mais resignação sobre sua violência
não haverá mais passividade sobre seus gestos imbecis.

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O outro poema está neste link: http://temposdemorangos.blogspot.com.br/2013/07/o-canto-de-mariano.html

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O afogado

Para Décio Lopes da Silva

Sou um estrangeiro no mar
um intruso nas ondas borbulhentas
que se quebram na orla.

Sou como a peste que mofa o pão
e com movimentos inóspitos
incorpora seu odor ao odor úmido das algas.
Tenho a boca cheia, mas sou mudo.

Porque no  mar não há o sexo, a luxúria, as palavras, as glórias
os barcos abundantes que são os sonhos
e os sonhos, que não são barcos
mas se adentram rotineiramente em mantos alaranjados.

Aqui o tempo é superficial
como para um cego é a lua
e para um obreiro o naufrágio.
Os minutos são tão longos quanto as noites pacatas.

Só existem espumas densas de sal,
cemitérios em que a morte desconhece
e não semeia seus corpos.

Não há sequer uma estrela acima desse mar
um amuleto que cintile na hora negra
um resquício profundo da chaga
uma gota de cólera postada na lepra que se abre.
O desespero real é, talvez, a maior das virtudes humanas.

No mar,
exilado e imigrante não sou ninguém
ao mesmo tempo que sou todos:
a mão divina que toca o infinito
e nada sente
o céu que afoga com seus lábios a água negra
e não sacia sua sede.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O espelho

Uma folha é uma folha
um corpo jamais deixa de ser corpo
e o reflexo do objeto não é o próprio objeto.
Por que aquele ser está estampado
na cegueira do vidro?
Seus movimentos são inversos
e se projetam na mesma velocidade com que os faço.
É desconhecido esse outro dentro de mim
esse que é aquele e faz de sua arte a dúvida,
e tem suas concavidades espalhafatosas
distorcendo o que é real.
É alheio aquele mundo. Recluso e convexo
fechando a eternidade em pontos de luz
que nos enganam, como o eterno infinito.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Encomenda ao luar

Quero aquele amor desvairado
perdido nas penumbras da cidade
exaltado na calma do campo
louco, alucinado
no brilho das estrelas e postes de luz

Um amor de sangue e voz
que faz com que meus olhos sejam espelhos
a refletir o cabelo que te serve
a quente boca que te serve
a pele que te serve
e me serve.

Porque eu quero ser seu corpo
Enquanto você é meu corpo;
e quero que você seja minha alma
minha alma humana e destemida
azul, pingando fogo e gotas de mel
no espaço inanimado que preenche

Desejo-te completa e também suas pernas
suas costas finas de borboleta
seus pés descalços sob a terra úmida,
que engole as arvores, as plantas
os insetos e meus sonhos dormidos
meus entes passados, meus anseios.

Eu a quero, Estrela reluzente que se tece no céu,
quero amar como um insano
que cantarola óperas no manicômio.
Quero gritar seu nome ao universo
beijar-lhe as flores contidas na face
como um cachorro que uiva
pela lua que atravessa o universo
e aconselha os destemidos.

Ah lua,
lua fantasmagórica e aberta,
dai-me esse amor que tanto quero