domingo, 23 de junho de 2013

O lobisomem

"E eu parti travestido de Dor" - Décio Pignatari

Um cão corta a rua
enquanto uma faca risca o vento.
E o pelo negro de cão
é o mesmo pelo dos pássaros
que comem matéria morta
com os dentes afiados
e as garras agudas
entrando dentro da carne

O cão não é um pássaro
e não é um homem,
vive sozinho
com os olhos de asco
cheirando a carne fria
e as têmporas abertas
preenchendo-lhe com nada o instinto voraz

Não vive e não conhece as árvores
não sabe do sexo, nem do amor
só sabe do desejo de outro cão
da pele áspera de outro cão
que lhe mostra os dentes
vermelhos e secos
em sua fecundidade de sangue

(Esse cão flácido,
ululando bolhas de enxofre
negro como o ventre podre de qualquer pobre
amorfo na miséria de cães imundos
duro, intacto, como o desejo inalcançado
de tantos cães mortos)

Atravessa a noite cheia
e se traveste com patas de cal,
pelos de lascas de metal
esse homem nu que agora é cão.
E procura nos vivos
o cogumelo que coagula solitário,
tinto no mel que fervilha nas veias,
no gelo arcaico das artérias.

Este cão, este homem desumano:
mangue de cólera adormecida
febre das bestas dilaceradas na noite.
O outro que se encontra em mim
no universo de luar que desconheço



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